O Decreto nº 12.686, de 21 de outubro de 2025, foi apresentado como uma nova era para a educação especial inclusiva no Brasil. No papel, soa moderno, empático, humano.
Na prática, é um retrocesso brutal, um ataque direto à qualidade da educação oferecida aos alunos com deficiência e transtorno do espectro autista (TEA).
Sob o discurso da inclusão plena, o governo federal plantou no texto legal a semente da desprofissionalização. E o epicentro dessa distorção está nos artigos 14 e 15, onde se define quem são, e o que precisam saber, os profissionais que estarão na linha de frente dessa política.
80 horas: a régua da mediocridade.
Segundo o decreto, o professor do Atendimento Educacional Especializado (AEE) deve ter licenciatura e, “preferencialmente”, uma formação específica em educação especial inclusiva com mínimo de 80 horas.
“Preferencialmente”, essa palavra, colocada de forma quase inocente, é uma tragédia semântica.
Significa que não é obrigatório. Ou seja: o profissional responsável por adaptar currículos, articular estratégias, orientar docentes e apoiar o desenvolvimento de alunos com deficiências pode, perfeitamente, não ter formação especializada alguma.
Agora, leia com atenção: 80 horas.
É o equivalente a dez turnos de trabalho, ou duas semanas de curso rápido, menos tempo do que se exige para habilitar um cidadão a dirigir um carro.
E é essa a “formação preferencial” que o Ministério da Educação julga suficiente para lidar com a complexidade do autismo, da deficiência múltipla, das altas habilidades, da surdez, da deficiência visual, motora, intelectual e de comunicação alternativa.
É indecente.
Trata-se de um atestado de desrespeito profissional e humano, que reduz o trabalho especializado a um curso de capacitação expressa, uma caricatura daquilo que deveria ser a espinha dorsal da inclusão.
Profissional de apoio: o novo “quebra-galho institucionalizado”.
O artigo 15 é ainda mais cruel. Ele define que o profissional de apoio escolar, aquele que auxilia o aluno nas tarefas diárias, na locomoção, na higiene, na comunicação, precisa apenas do ensino médio e de 80 horas de formação obrigatória.
Sim, o decreto criou uma categoria de “profissional essencial” com preparo mínimo, transformando o apoio em uma extensão precária da boa vontade, e não em um campo técnico reconhecido.
O resultado é previsível: pessoas mal preparadas sendo jogadas em contextos de altíssima complexidade emocional, pedagógica e comportamental, com a missão impossível de promover “inclusão de qualidade”.
E quando algo der errado, e vai dar, a culpa, como sempre, recairá sobre a escola, o professor e a família.
O Estado lava as mãos. Legaliza o improviso e chama isso de política pública.
O governo federal tenta vender o decreto como avanço civilizatório. Mas não existe inclusão sem competência. E competência exige formação robusta, constante, interdisciplinar.
A retórica da “agilidade” e da “desburocratização” virou uma cortina de fumaça para baratear o custo da inclusão.
É o velho truque neoliberal travestido de modernidade: enxugar o Estado à custa da dignidade das pessoas.
Na prática, o decreto cria o cenário perfeito para terceirizar responsabilidades, empurrando aos municípios e escolas o dever de executar uma política complexa sem garantir meios, estrutura ou profissionais à altura da tarefa.
O resultado? Alunos vulneráveis sendo atendidos por uma rede de boa vontade, não de especialização. Inclusão de fachada, com certificação governamental.
O texto é elegante, cheio de palavras bonitas: equidade, diversidade, acessibilidade.
Mas, ao rasgar a exigência mínima de especialização, o decreto transforma direitos constitucionais em retórica burocrática.
O Brasil já vive o colapso da formação docente, e o governo federal decide agravar o problema reduzindo a exigência técnica justamente onde ela deveria ser máxima.
Como confiar que o “estudo de caso” e o “plano de atendimento educacional especializado” previstos no texto funcionarão, se quem os aplica não tem preparo suficiente para entender nem as nuances da deficiência, nem a metodologia da intervenção?
A resposta é simples: não funcionarão.
Virarão papel de arquivo, assinados por professores sobrecarregados e apoiadores despreparados, com supervisão inexistente e metas de desempenho irreais.
O governo promete “inclusão para todos”, mas entrega improviso para cada um.
Substitui a qualificação pela pressa, a técnica pela retórica e o profissionalismo pela economia de planilha.
As famílias serão forçadas a acreditar que seus filhos estão incluídos. Os professores fingirão que estão preparados. E o Estado comemorará relatórios com “avanços” estatísticos, enquanto a realidade continuará sendo a de salas lotadas, apoios despreparados e crianças desassistidas.
Não é uma política de inclusão. É uma política de desresponsabilização, disfarçada de avanço humanitário.
O Decreto 12.686/2025, que é o crime da omissão institucional, não inaugura uma nova era da inclusão, ele inaugura a era do faz de conta inclusivo. E o coração dessa farsa está nos artigos 13, 14 e 15, que institucionalizam a precarização do apoio educacional e o desprezo pela formação docente.
A verdadeira política inclusiva não se mede por decretos nem discursos, mas pela qualidade técnica e humana de quem sustenta a sala de aula.
Enquanto o governo tratar o profissional de apoio como mão de obra barata e o professor do AEE como um luxo opcional, a inclusão será apenas uma palavra bonita em um texto que cheira a retrocesso.
































