Quando o racismo aparece em vídeo e exige que novembro seja mais do que discurso.
Abri o Instagram como quem respira fundo antes de começar o dia. Era novembro. O mês em que a palavra consciência ecoa mais alto, embora para nós ela nunca tenha feito silêncio. Novembro sempre me convoca. Mas, naquele dia, ele me trouxe outra coisa. Trouxe um incômodo que escorreu pelos meus olhos como tinta fresca.
O primeiro vídeo mostrava um gorila. Um animal enorme, caminhando no espaço estreito de um cativeiro. Sobre a imagem, uma frase em tom de brincadeira: curta, comente, compartilhe. Um chamado tão comum nas redes que quase passei batido. Quase.
Mas algo me segurou.
Deslizei para o lado.
E a segunda cena apareceu.
Dentro de uma farmácia iluminada, corredores organizados, prateleiras cheias de remédio, uma funcionária sorria para a câmera com o rosto inteiro pintado de preto. Não era maquiagem artística, não era fantasia infantil. Era a velha prática mascarada de novidade. Era blackface. No mês da Consciência Negra. No Brasil de 2025. Em Foz do Iguaçu.
Gorila primeiro.
Rosto pintado depois.
A edição não foi coincidência.
A sequência dizia o que a legenda não teve coragem de assumir.
A comparação entre nós e animais é uma das violências mais antigas do racismo. Uma prática usada para justificar escravidão, exclusão, inferiorização. Uma ferida que nunca cicatrizou. E ali estava ela, reeditada em forma de vídeo curto, servida como conteúdo leve, envolta em luz branca de farmácia.
Curta.
Comente.
Compartilhe.
Como se não fosse ofensa.
Como se não fosse desumanização.
O que mais me espantou não foi o vídeo em si. Foi a naturalidade. Foi perceber que alguém filmou, editou, aprovou, postou e achou graça. Que ninguém ali levantou a mão para dizer “isso é errado”. Que nenhuma consciência se manifestou em pleno mês que carrega a memória de Zumbi, Dandara, Lélia, Abdias, Sueli Carneiro, Carolina de Jesus.
Blackface não é tinta.
É cicatriz histórica.
É lembrança de séculos de violência transformados em espetáculo.
E a associação com um gorila não é humor. É racismo explícito. É desumanização. É violência simbólica. E dói.
Escrevo esta crônica porque não consigo naturalizar o que sempre foi brutal. Porque novembro não é mês de ridicularizar. É mês de lembrar. É mês de reconhecer. É mês de enfrentar.
E porque a palavra, quando nasce da dor e da ancestralidade, denuncia e cura ao mesmo tempo.
Que fique registrado:
- não somos bicho de vídeo,
- não somos tinta de fantasia,
- não somos conteúdo para engajar.
Somos gente.
Somos história viva.
E não vamos aceitar menos do que respeito.
Em novembro.
E todos os dias.



























