A 2ª Vara da Fazenda Pública de Foz do Iguaçu concedeu, nesta terça-feira (23), uma decisão liminar que obriga a prefeitura a restituir o material didático “English After School” às escolas municipais.
O livro, voltado ao ensino de língua inglesa para turmas do 4º ano do Ensino Fundamental, havia sido recolhido por ordem do Município, gerando protestos de educadores e do sindicato da categoria.
A ação foi movida pelo Sindicato dos Professores e Profissionais da Educação da Rede Pública Municipal de Foz do Iguaçu. Segundo a entidade, a retirada do material ocorreu sem justificativa formal, motivada por uma polêmica política envolvendo um vereador local.
O parlamentar afirmou, por meio das redes sociais, que uma tirinha presente no livro incentivaria a “sexualização precoce” de crianças por conter diálogo afetivo entre duas personagens femininas no contexto do Valentine’s Day.
Pressão política e decisão precipitada: os bastidores da polêmica
No centro da controvérsia está o vereador Bosco Foz (PL), que alegou ter sido procurado por pais de alunos preocupados com o conteúdo do material didático.
Em suas publicações nas redes sociais, usou termos como “monstruosidade” e “ataque à inocência”, prometendo formalizar a retirada dos livros e afirmando que o material teria sido “sorrateiramente distribuído durante a pandemia”.
A repercussão provocou ação imediata da Secretaria de Educação, que ordenou o recolhimento dos livros sem qualquer diálogo com os educadores. A medida foi duramente criticada pela comunidade escolar.
Paralelamente, o jornalista Ed Queiroz revelou que a secretária de educação Silvana e outras duas servidoras haviam participado de um evento de uma editora de livros bilíngues na cidade de Pilar (AL).
Em vídeo publicado pelo Secretário de Educação de Pilar/AL, aparece a Secretária de Educação Silvana Garcia confirmando que iria implantar o material no município. Veja o vídeo abaixo:
Diante da pressão política e da resposta imediata da Secretaria, a judicialização do caso tornou-se inevitável. A seguir, a decisão da Justiça detalha por que a retirada do material foi considerada ilegal.
Juiz vê erro grave e suspende retirada dos livros
O juiz Wendel Fernando Brunieri, da 2ª Vara da Fazenda Pública, acatou o pedido de antecipação de tutela. Em sua decisão, afirmou que o ato administrativo que ordenou o recolhimento carece de motivação legal, ferindo princípios constitucionais como a liberdade de ensino e o direito à educação.
“O ato impugnado não apresenta causa justificante para a medida extrema de retirada do material, o que, neste momento inicial, aponta mais para um prejuízo do que para um benefício”, escreveu o magistrado.
Ele também observou que o livro já vinha sendo utilizado há anos.
Prazo de 10 dias para devolução
Com base no artigo 300 do Código de Processo Civil, a decisão judicial suspendeu os efeitos do memorando interno nº 40218/2025 e determinou a devolução imediata do material “English After School”, 4º ano, Livro 1.
O prazo dado à prefeitura é de 10 dias, sob pena de multa de R$ 10 mil, valor que poderá ser aplicado diretamente à secretária Silvana Garcia, responsável pelo cumprimento do ato, e não ao erário público.
O juiz ressaltou que os efeitos da medida são reversíveis, permitindo que os materiais sejam novamente recolhidos, caso a decisão seja revista posteriormente.
Liberdade pedagógica e direitos constitucionais
A decisão também reforça princípios constitucionais da liberdade de ensinar, aprender e pesquisar, conforme previsto no artigo 206 da Constituição Federal. Para o juiz, o recolhimento sem justificativa clara representa uma violação à autonomia pedagógica e um prejuízo direto aos alunos e professores.
A prefeitura ainda pode recorrer da decisão, mas, enquanto isso, deve cumprir a ordem judicial para evitar sanções.
O que é o Valentine’s Day e como é trabalhado na educação
Para compreender o centro da controvérsia, é necessário entender o que representa o Valentine’s Day e como essa data é abordada no ensino de inglês.
O Valentine’s Day, celebrado em 14 de fevereiro, é amplamente abordado em materiais didáticos de língua inglesa como forma de apresentar aspectos culturais.
Em escolas dos Estados Unidos e de outras nações de língua inglesa, é comum que crianças troquem cartões com mensagens de amizade e carinho entre colegas e professores, sem qualquer conotação romântica ou sexual.
No ensino de inglês, a data é utilizada pedagogicamente para trabalhar vocabulário afetivo e expressões simples do cotidiano. Frases como “Be my Valentine” ou “I love you” são ensinadas em contextos de afeto e convivência, e sua aplicação em materiais voltados ao público infantil tem caráter exclusivamente educativo.
Em inglês, a expressão “I love you” é usada de forma mais ampla e flexível do que no português, podendo representar amor fraternal, amizade ou apreço — especialmente em faixas etárias mais jovens. Por isso, especialistas consideram inadequado interpretar esse tipo de conteúdo como impróprio ou sexualizado.
Servidora denuncia falta de critério técnico e cronologia suspeita
Além dos aspectos jurídicos e culturais, bastidores da Secretaria revelam contradições e possíveis falhas na condução do caso.
Uma servidora da Secretaria Municipal de Educação, que pediu anonimato por receio de retaliações, relatou que participou de reuniões técnicas nas quais se discutia a aplicação do material “English After School”.
Segundo ela, embora houvesse atualizações pontuais nos planos de aula ao longo dos anos, a orientação pedagógica permanecia a mesma: o foco principal era o vocabulário e a gramática vinculados às unidades do livro.
Os temas culturais, como o Valentine’s Day, podiam ser trabalhados dentro dos períodos planejados, desde que o ritmo da turma permitisse. “Na maioria das vezes, esse conteúdo cultural acabava não sendo aplicado, justamente porque os alunos estavam em fase inicial e o tempo era limitado”, explicou.
A servidora também afirmou que, até onde foi possível apurar, não houve qualquer avaliação técnica por parte da Secretaria para embasar a retirada dos livros, tampouco consulta a uma equipe pedagógica especializada.
Ela chamou atenção para a sequência dos acontecimentos: a viagem de integrantes da secretaria a um evento promovido por outra editora ocorreu numa sexta-feira; no domingo, o vídeo do vereador foi publicado; e na manhã de segunda-feira já havia uma ordem para recolhimento dos materiais.
Para parte da comunidade escolar, isso alimenta a suspeita de que o recolhimento do material teria sido motivado não por razões técnicas ou educacionais, mas por interesses políticos ou comerciais ainda não totalmente esclarecidos.
Reação do vereador Bosco Foz à decisão judicial
Em nota pública, o vereador Bosco Foz (PL) voltou a criticar o material didático e classificou a decisão da Justiça como um desrespeito às famílias.
Segundo ele, o conteúdo do material é “inadequado, subjetivo e confuso”, e deveria ser avaliado sob a ótica dos valores familiares, não apenas pela escola.
Bosco afirmou que foi procurado por pais preocupados e considera que a escola “não pode ser um campo de experimentação ideológica”. Ele criticou o uso do Valentine’s Day como exemplo, dizendo que a data possui conotação romântica e fere o papel da família na formação moral das crianças.
O vereador também rebateu a atuação do sindicato autor da ação. Para ele, o Sinprefi “não representa todos os professores” e a retirada dos livros foi uma “resposta legítima a um clamor social”.
Em tom firme, declarou que não recuará e espera que a Prefeitura recorra da decisão. Ele afirmou que continuará “ao lado das famílias”. Veja a nota completa do vereador: (AQUI).
A equipe do Diário das Águas entrou em contato com a Secretaria Municipal de Educação de Foz do Iguaçu para solicitar esclarecimentos sobre o recolhimento do material didático, os critérios adotados na decisão e a participação de servidores em eventos relacionados à aquisição de novos livros.
Até o momento da publicação desta matéria, não houve retorno oficial por parte da Secretaria.