Outro dia me deparei com um trecho de um talk show fictício. A apresentadora, de cabelo impecável e voz aveludada, chamava-se Marisa Maiô, uma mistura de elegância e calor de verão em um nome que poderia muito bem ter saído de um roteiro da Globo nos anos 90. Só que Marisa não existe. O programa, tampouco. Tudo foi criado por uma inteligência artificial: cenário, convidados, roteiro, piadas, trilha sonora. Tudo fake.
Pausa para o susto.
Estamos entrando em uma era em que o sucesso já não depende da realidade, mas da capacidade da máquina de simular com perfeição o que um humano levaria décadas para dominar: o carisma, o improviso, a emoção. Estamos criando ídolos digitais e programas que nunca foram gravados, com protagonistas que não existem, mas que viralizam mais do que qualquer talk show da vida real.
Enquanto isso, os humanos reais, com suas imperfeições, olheiras, travas criativas e crises existenciais, vão sendo empurrados para escanteio. O brilho da inteligência humana está sendo ofuscado pela eficiência da inteligência artificial.
Fico pensando: em poucos anos, será que alguém ainda vai citar Shakespeare, Nietzsche, Clarice Lispector, Machado de Assis, Drummond ou Nelson Rodrigues? Ou nos contentaremos com frases inventadas por robôs treinados para soar profundos, mas que nunca enfrentaram uma guerra, nunca perderam um amor, nunca choraram no banheiro de madrugada, nunca escreveram à mão uma carta que nunca foi enviada?
É claro que a IA tem seu valor, mas há uma linha tênue entre o uso e o abuso, entre o avanço e o apagamento. Quando livros inteiros são escritos por algoritmos, roteiros são produzidos por prompts e vozes são sintetizadas com perfeição, qual é o papel do humano nisso tudo?
Estamos correndo o risco de sermos apenas os curadores do nosso próprio desaparecimento.
Marisa Maiô é só o começo. Amanhã pode ser um poeta virtual ganhe um prêmio. Um artista de IA que exponha suas obras no museu. Um jornalista sintético que apresente o Jornal Nacional.
E nós? Seguimos aqui, em carne, osso e contradição. Tentando lembrar ao mundo que o que é real não precisa ser perfeito. Só precisa ser humano.